Título da obra: Sagarana

Reprodução fotográfica Correio da Manhã/Acervo Arquivo Nacional
João Guimarães Rosa (Cordisburgo, Minas Gerais, 1908 - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1967). Contista, romancista, poeta, médico e diplomata. Forma-se em medicina pela Universidade de Minas Gerais, em 1930. Durante dois anos, exerce a profissão na cidade de Itaguara, no interior mineiro, o que lhe permite conhecer o cotidiano dos sertanejos, que retrata mais tarde em seus contos, novelas e no romance Grande Sertão: Veredas. Atua, então, como oficial-médico no 9º Batalhão de Infantaria em Barbacena, na Revolução Constitucionalista. Em 1934, ingressa na carreira diplomática, favorecido pelo conhecimento de idiomas, que começa a aprender aos 7 anos de idade. Em 1937, recebe prêmio da Academia Brasileira de Letras (ABL) por seu único volume de poesia, Magma, que o autor mantém inédito (a primeira edição, póstuma, sai em 1997). Nesse mesmo ano, participa de outro concurso com a coletânea de contos Sagarana, que, apesar do voto favorável de Graciliano Ramos, obtém a segunda colocação. O volume é revisado pelo autor e publicado em 1946 e recebe diversas premiações, sendo considerado hoje uma das obras mais importantes da ficção brasileira do século XX. Uma das histórias mais conhecidas de Rosa, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, pertencente a esse volume, é adaptada para o cinema em 1965, pelo diretor Roberto Santos. Em 1961, Rosa ganha o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra literária. É eleito para a ABL, em 1963, por unanimidade, mas, supersticioso, temendo a morte no momento de sua "consagração", adia a cerimônia de posse por quatro anos, e veste o fardão em 16 de novembro de 1967. Morre três dias depois, no Rio de Janeiro, aos 59 anos.
Os contos e as novelas de Guimarães Rosa destacam-se pelas inovações de linguagem, e em especial pelo uso da fala popular, de expressões regionais, mescladas a neologismos, arcaísmos, palavras indígenas, estrangeiras, e ainda por construções inusitadas de frases que por vezes se chocam com a própria sintaxe da língua portuguesa. A esse respeito, escreve Haroldo de Campos (1929 - 2003): "[...] sua revolução da palavra, consegue fazer dela um problema novo, autônomo, alimentado em latências e possibilidades peculiares a nossa língua, das quais tira todo um riquíssimo manancial de efeitos". Alberto da Costa e Silva (1931) afirma que Rosa "escreveu um romance, novelas e contos como se fizesse poesia. Sabendo que as palavras, além de significado, 'têm canto e plumagem', e que as frases não devem ser gaiolas, mas, sim, espaço e, no espaço, voo".
O conhecimento do sertão brasileiro e de culturas estrangeiras está presente no universo simbólico e semântico de Rosa, que cria neologismos misturando termos de diferentes línguas (inclusive o título de seu livro de estreia, Sagarana, deriva do termo saga, que designa as epopeias escandinavas). A ambientação regionalista, também característica dessa primeira obra, permanece nos títulos seguintes, como Corpo de Baile, Tutameia e Primeiras Estórias. Sua temática e linguagem, porém, diferenciam-se do regionalismo dos anos 1930, representado por autores como Jorge Amado (1912 - 2001), Rachel de Queiroz (1910 - 2003) e José Lins do Rego (1901 - 1957). Segundo Beth Brait, "em Guimarães Rosa a tendência regionalista acaba assumindo a característica de experiência estética universal, compreendendo a fusão entre o real e o mágico [...]. O folclórico, o pitoresco e o documental cedem lugar a uma maneira nova de repensar as dimensões da cultura, flagrada em suas articulações no mundo e na linguagem".
Ao mesmo tempo que inova a ficção regional utilizando recursos da poesia, Guimarães Rosa investe também na renovação narrativa, superando as noções clássicas de tempo, espaço e personagem. No romance Grande Sertão: Veredas, por exemplo, a evolução do enredo não segue uma cronologia linear, do tipo início-meio-fim, os episódios se sucedem de modo aparentemente caótico, sem obedecer a uma sequência temporal própria do romance realista ou naturalista. O espaço narrativo é múltiplo, alegórico, não se desenvolve num único local: a viagem, o movimento, a travessia são os ambientes em que acontecem as várias narrativas construídas dentro da história principal. Os personagens principais, Riobaldo e Diadorim, por sua vez, não têm uma construção psicológica do tipo realista, regendo-se antes pelo princípio da ambiguidade. Diadorim é a jovem que se disfarça de jagunço para vingar a morte do pai, evitando o desejo em favor do ódio, e Riobaldo sente a angústia do amor pelo companheiro, que ele ignora ser uma mulher, e ainda o dilema metafísico em relação a um suposto pacto que teria realizado com o demônio, tema fáustico que se prolonga por todo o romance. No Grande Sertão, verifica-se ainda a quebra das fronteiras entre os gêneros literários: estão aqui elementos da poesia, do romance, da epopeia, bem como de formas literárias de diferentes períodos históricos.
A presença do imaginário medieval, por exemplo, é uma constante, desde o duelo na cena final de A Hora e a Vez de Augusto Matraga, do livro Sagarana, até as passagens épicas do Grande Sertão: Veredas, em que não falta também o elemento religioso, típico das novelas de cavalaria, como o ciclo do rei Artur, na literatura anglo-saxã. Costa e Silva diz que o "Grande Sertão: Veredas não é apenas mais um descendente da epopeia, como qualquer outro romance. É uma epopeia moderna, em aparente prosa. Como a Odisseia e Os Lusíadas, é um poema longo de viagem, de navegação, de travessia - palavra que se repete insistente em todo o livro e lhe anuncia o ponto final. [...] Nesse livro de Rosa sobre o mistério e a grandeza feérica do mundo, entrelaçam-se, ao tema da viagem como missão e destino, o enredo da tentação e do pacto fáustico e o da donzela que se faz soldado. Tudo a passar-se num sertão que é real e simbólico...".
Os escritos de Guimarães Rosa recuperam também o universo onírico da cultura popular, o estilo assombroso dos "casos", como observa Costa e Silva: "Tanto nestas Primeiras Estórias quanto em Tutameia Guimarães Rosa favoreceu o caso, de enredo curto e cheio de surpresas". São ficções "que se querem parecidas a anedotas", mas, "se se assemelham a anedotas no inesperado do desfecho, não se apresentam rasas como elas: todas essas estórias se fazem de mergulho ou voo. E mais: em muitos desses textos breves, o sertão continua vestido de Idade Média, com seus cavaleiros corteses, suas mulheres-damas que jamais perdem a condição de senhora a quem se serve por amor, e por quem se guerreia, e para quem se empreende a travessia dos medos". Nas narrativas de Rosa, porém, os tipos medievais aparecem travestidos de jagunços, fazendeiros, prostitutas, beatos e loucos. Beth Brait destaca que os animais aparecem também como personagens, e desde Sagarana, que abre com o relato O Burrinho Pedrês. Para a autora, "os animais, de uma forma geral, assim como a paisagem, assumem um papel que vai do inventário minucioso da flora e da fauna até a recriação poética e mítica. A natureza, além de cenário, é um agente ativo, participante, diretamente ligado aos destinos do homem, contribuindo, dessa forma, decisivamente, para a intensa plasticidade da linguagem e para a visão de mundo representada pelos textos rosianos".
Outra característica da obra de Rosa, agora no campo referencial, é a presença constante do sagrado. A espiritualidade, porém, não assume um caráter confessional, mas universal, incorporando imagens e símbolos de diferentes tradições, desde a budista e a taoista (presentes já em seu livro de poemas Magma, de 1937) até uma visão bastante pessoal do cristianismo, expressa sobretudo no romance Grande Sertão: Veredas, que pode ser considerado um diálogo com o Fausto, de Goethe. A busca da redenção possível, na visão do autor, não exclui o estar no mundo, nem mesmo a paixão e a luta: é o homem integral que aparece na metafísica rosiana, o viajante em travessia que não teme a condenação eterna porque não acredita no mal como um ente absoluto: "Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo, não há! É o que eu digo, se for... Existe é o homem humano. Travessia".
Reprodução Fotográfica Horst Merkel
Reprodução Fotográfica Horst Merkel
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