Graciela Guarani
Texto
Graciela Guarani (Dourados, Mato Grosso do Sul, 1986). Diretora de cinema, curadora e professora. Seu trabalho promove a visibilidade dos povos indígenas por meio do audiovisual, expondo suas lutas, pensamentos, modos de vida e enfatizando o protagonismo feminino.
Graci é pertencente à nação Guarani Kaiowá e cresce na reserva indígena de Dourados. Inicia sua trajetória como professora com quatorze anos, ao lecionar para seu povo a partir da iniciativa da organização não governamental (ONG) Mova – Educação de Jovens e Adultos. Em 2001, participa da formação da Ação dos Jovens Indígenas de Dourados (AJI). O grupo tem o objetivo de dinamizar as atividades educativas, além de ampliar a gama de opções de atividades lúdicas e políticas para a juventude local. A AJI cria oficinas de teatro, desenho, música e fotografia. É a partir dessa prática fotográfica que tem seus primeiros contatos com uma câmera, nesse caso especificamente com a câmera de celular. A captação de imagens digitais suscita o desejo de produzir vídeos e ingressar no campo do cinema.
Em 2017, começa a produzir seus próprios filmes e lança o curta-metragem documental Tempo circular, que condensa alguns dos seus interesses e procedimentos estéticos principais. O filme conta com uma narração reflexiva da diretora, que se aproxima de um registro ensaístico, além de entrevistas convencionais com os integrantes da nação Pankararu, situada no estado de Pernambuco. Por meio das falas e imagens, documenta-se cantos, preparação para rituais e outras práticas do povo da nação Pankararu e se tece uma perspectiva de seus saberes ancestrais. A montagem do filme reflete a visão não linear, nem mensurável ou objetiva, do tempo que rege a vida dos pankararu. A repetição de algumas imagens reiteradas ao longo do filme remete a essa temporalidade circular.
Lançado em 2019, seu curta Mba’eicha Nhande Rekova’erã [Mensageiro do futuro], retoma os eixos principais de Tempo circular, sendo, desta vez, filmado na terra de origem de Graci, na reserva indígena de Dourado, no Mato Grosso do Sul. O próprio título do filme, evocando a existência, no presente, de mensageiros do futuro, já indica um embaralhamento temporal que rompe com a percepção ocidental de linearidade. A insistência no tema da chuva também corrobora essa noção, associando o passar do tempo com o caráter cíclico das águas, que ora evaporam, ora caem do céu.
Como educadora, atua em oficinas que cruzam problemáticas indígenas com questões de gênero. Em 2019, leciona no curso “Mulheres indígenas e mídias sociais – da invisibilidade ao acesso aos direitos”, em parceria com a ONU Mulheres Brasil, e é uma das ministrantes da oficina de cinema “Ocupar a terra, ocupar a tela: mulheres, terra e movimento”, promovida pelo Instituto Moreira Salles (IMS) e pelo Museu do Índio, do Rio de Janeiro. Graci investe em tecnologias simples como o celular, enfatizando a importância da acessibilidade para um fazer cinematográfico mais próximo das lutas e estratégias de sobrevivência cotidianas, capazes de serem registradas diretamente por quem as vive.
Em 2020, durante o isolamento social decorrente da pandemia de Covid-19, participa da realização coletiva de um conjunto de vídeos chamado Nhemongueta Kunhã Mbaraete, comissionada pelo programa curatorial IMS Convida, promovida pelo IMS. O trabalho consiste em um troca de vídeo-cartas entre uma mulher branca e três mulheres indígenas, habitando diferentes territórios. O termo guarani Nhemongueta pode ser traduzido como fofoca ou conversa à toa. Com o complemento de Kunhã Mbaraete, o título assume o sentido de “conversa entre mulheres guerreiras”. Trata-se de um desejo de ressignificar o campo semântico do termo “fofoca”, comumente associado de modo pejorativo ao gênero feminino. Em matéria publicada pela Revista Moventes, Graci Guarani revela a aproximação com o termo “fofoca” estabelecido pela antropóloga Sandra Benites (1975). Para a pesquisadora, o campo da fofoca, ao estabelecer conversas paralelas aos debates públicos masculinos, foi historicamente fundamental para a elaboração de estratégias de luta e sobrevivência entre as mulheres de diferentes culturas. Revelando de modo íntimo o cotidiano de cada uma durante esse período de crise sanitária, os vídeos produzem uma conversa que tensiona os limites entre privado e público e atingem o campo político a partir do pessoal. Trocando experiência a partir das diferenças, buscam tecer um ponto comum nesse encontro entre mulheres.
Em 2020, o longa-metragem Meu sangue é vermelho, codirigido com o cineasta e jornalista Thiago Dezan (1987), circula internacionalmente. O filme acompanha a trajetória de Werá, jovem rapper indígena. Ao mostrar não só cantos tradicionais, mas um gênero cosmopolita como o rap, a narrativa desfaz estereótipos atrelados a clichês do que seria uma imagem da cultura indígena essencial e fixada no passado. Recebe o prêmio de melhor documentário no Milestone Worldwide Film Festival, em Battipaglia, Itália, e melhor trilha sonora original em documentário no Beyond the Curve International Film Festival, em Paris, França.
Atua como curadora em diferentes festivais, sites e redes. Já programou a Mostra Amotara – Olhares das Mulheres Indígenas, o Cine Kurumin – Festival de Cinema Indígena, o Festival Pan-Amazônico de Cinema – Amazônia Doc, além do site da Rede Cineflech e do canal Olhar da Alma, no YouTube, onde deposita a maior parte de seus filmes gratuitamente. Como declara em seu texto curatorial da sessão “Nós da Terra”, da Mostra de Cinema Moventes, os filmes indígenas ou realizados por outras minorias historicamente excluídas por conta do racismo estrutural, “a todo momento entram em embate com esta estrutura, através do empoderamento, da força e resistência de suas culturas, modos e ancestralidades”1.
Graci Guarani aposta no cinema como ferramenta crucial para as lutas sociais, sobretudo indígenas. Com seus filmes e aulas, apresenta imaginários alternativos e em conflito com os modos coloniais de perceber o mundo.
Notas
1. Informação extraída do texto de apresentação do trabalho elaborado pelas próprias artistas e cineastas. Disponível em: https://ims.com.br/convida/michele-kaiowa-graciela-guarani-patricia-ferreira-para-yxapy-sophia-pinheiro/. Acesso em: 22 nov. 2021.
Fontes de pesquisa 9
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- MENDES, Luna. Entre falas bonitas e perigosas: notas para um estudo sobre a fofoca no cotidiano Mbya-Guarani. Enfoques, Rio de Janeiro, edição especial 29ª Jornada Discente do PPGSA/UFRJ, p. 10-23, 2019.
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- QUEIROZ, Ruben Caixeta de. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. Devires, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 98-125, jul./dez. 2008. Disponível em: https://www.academia.edu/5502729/Cineastas_Ind%C3%ADgenas_e_pensamento_selvagem. Acesso em: 17 nov. 2020.
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- TESTA, Adriana Queiroz. Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e conhecimento entre os Guarani Mbya. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 2, p. 291-307, maio/ago. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/wgBgfmnQv44XRG6M7DwWZkR/abstract/?lang=pt. Acesso em: 17 nov. 2020.
Como citar
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GRACIELA Guarani.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023.
Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa643502/graciela-guarani. Acesso em: 02 de fevereiro de 2023.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7