Título da obra: Elis & Tom

Elis Regina Carvalho Costa (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 1945 – São Paulo, São Paulo, 1982). Cantora. Ao longo de sua trajetória, Elis valoriza novos compositores e aponta caminhos para a música popular brasileira (MPB), explorando não apenas os recursos técnicos de sua voz, mas também múltiplas formas de expressão. Na medida em que modifica elementos estruturais da canção, torna-se coautora daquilo que interpreta.
Criada em um bairro operário de Porto Alegre, estuda piano por dois anos, o que contribui para sua iniciação teórica. Seu maior aprendizado, contudo, se dá com a escuta de cantores do rádio, como Ângela Maria (1929-2018) e Cauby Peixoto (1931-2016), dos quais assimila a afinação, o controle da respiração e o uso de vibratos. Aos 11 anos inicia como caloura no programa Clube do Guri, na Rádio Farroupilha, e é contratada como cantora três anos mais tarde pela Rádio Gaúcha. Com a inauguração da TV Gaúcha em 1962, torna-se também parte de seu elenco. Atua como crooner em bailes e grava quatro LPs entre 1961 e 1964. Essas experiências lhe possibilitam não apenas amadurecer suas qualidades vocais como também adquirir prática de palco e adaptar-se a diferentes formações instrumentais.
Com sua mudança para o Rio de Janeiro em 1964, trava contato com a cena musical do reduto boêmio do Beco das Garrafas, num momento de transformações significativas do samba e da bossa nova. Além da influência do hot jazz na formação piano-baixo-bateria, um canto mais extrovertido passa a ser valorizado – o que vai ao encontro do estilo vocal de Elis –, bem como o gestual enérgico. Com o coreógrafo americano Lennie Dale (1934-1994), a cantora aprende uma nova maneira de se movimentar no palco, influenciada pelos musicais da Broadway. A interpretação expansiva e a fusão com o hot jazz nos arranjos se faz presente em seu álbum Samba Eu Canto Assim (1965), e a performance gestual é incorporada em sua interpretação da canção “Arrastão” (1965), de Edu Lobo (1943) e Vinicius de Moraes (1913-1980), vencedora do 1º Festival Nacional da Música Popular Brasileira, em 1965. O mesmo vigor é levado para sua atuação na TV Record, em São Paulo, no programa O Fino da Bossa, apresentado em parceria com o cantor Jair Rodrigues (1939-2014), de modo a causar impacto não só na audiência ao vivo, mas também no público telespectador.
Devido a sua habilidade técnica e intuição musical, Elis é capaz de transformar canções quase inexpressivas em obras de grande comunicação com o público, como “Upa, Neguinho” (1966), de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), a princípio composta como uma espécie de vinheta que costura números poéticos e musicais da peça Arena Conta Zumbi (1965). Na releitura de Elis, a canção recebe arranjo que privilegia o aspecto rítmico, breques com percussão e acentuado com palmas.
Na década de 1970, já tendo realizado turnês e gravado discos no exterior, a cantora atinge uma maturidade musical que lhe permite se libertar de algumas posições, como a aversão à jovem guarda. Em 1970, registra “As Curvas da Estrada de Santos”, de Roberto Carlos (1941) e Erasmo Carlos (1941), que, em sua interpretação, aproxima-se a um blues, com vocal “rasgado”. Em outras canções, a cantora dialoga com o rock, o pop e a soul music. Em seu repertório convivem músicas efusivas e dançantes com outras mais intimistas, como “Águas de Março” (1972). Nesta versão, Elis cria acentuações rítmicas e contornos melódicos que influenciam as gravações posteriores de vários intérpretes, inclusive do próprio compositor Tom Jobim (1927-1994), quando eles registram a canção em dueto no LP Elis & Tom (1974). Em 1975, a cantora dedica-se à concepção do espetáculo Falso Brilhante (1976), que faz uma retrospectiva de sua vida e obra até aquele momento. A cantora inova ao empreender um trabalho de criação coletivo, incluindo elementos como a canción latino-americana e músicas de compositores estreantes, como Belchior (1946-2017).
Além de vivenciar as mudanças nos meios de divulgação musical, a obra de Elis é atravessada pelas tensões políticas de sua época, quer pela censura da ditadura civil-militar vigente no país, quer pela cobrança de posicionamentos contra a repressão, o que a leva a adotar uma postura mais politizada. Uma das canções mais emblemáticas de sua carreira é o samba “O Bêbado e a Equilibrista” (1979), de João Bosco (1946) e Aldir Blanc (1943), composição que se torna conhecida na época como “hino da anistia”1.
Nos anos 1980, a cantora se aproxima ao universo do pop, incorporando a sonoridade dos sintetizadores em seus discos. Além de estreitar o diálogo com compositores do Clube da Esquina, já presentes em seus trabalhos da década anterior, Elis grava a canção “Alô, Alô, Marciano” (1980), de Rita Lee (1947) e Roberto de Carvalho (1952), imprimindo à sua versão diversas nuances nas frases ditas com afetação e em subtextos que intensificam a ironia e o deboche à alta sociedade. As variações de timbre também estão presentes em “Aprendendo a Jogar”, de Guilherme Arantes (1953), na qual a cantora expressa diversas intenções em uma mesma frase, cantada com entonações diferentes.
A diversidade do repertório e das formas de interpretar de Elis Regina mostra uma artista que se reinventa constantemente ao longo de sua trajetória, que se desenrola em meio a um cenário de grandes mudanças na cultura musical brasileira e em seu circuito de produção e difusão.
1. A música fica conhecida como um hino informal de resistência à ditadura antes da aprovação da Lei da Anistia de 1979, que permite a volta de brasileiros exilados.
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