Título da obra: Compêndio para uso dos pássaros

Retrato de Manoel de Barros
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s.d.
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Marcelo Buainain
Reprodução fotográfica Marcelo Buainain
Manoel Wenceslau Leite de Barros (Cuiabá, Mato Grosso, 1916 - Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 2014). Poeta. Concentrando-se em temas e situações do cotidiano, surpreende o leitor com uma linguagem simples e, ao mesmo tempo, inovadora. Principalmente nos livros publicados a partir dos anos 1960, sua escrita expande os limites da língua, ao reunir sentidos aparentemente incompatíveis em construções que extrapolam a gramática padrão.
Um de seus temas recorrentes é a infância. Realiza-se inicialmente pelo mergulho na memória, com cenas e personagens que remetem à própria infância em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Essa presença é evidente no livro de estreia, Poemas Concebidos Sem Pecado (1937), que se abre com “Cabeludinho”, composição narrativa em 11 partes, dedicada a retratar a convivência desse menino no bairro e sua descoberta como poeta. O mesmo ambiente surge nas seções seguintes do livro, concentradas em personagens pobres e singulares, como “Seu Zezinho-margens-plácidas” e a prostituta “Antoninha-me-leva”.
No segundo livro, Face imóvel (1942), a paisagem é a cidade do Rio de Janeiro, onde vive de 1928 a 1940 e completa os estudos básicos e a formação em Direito. Mais ligados a uma poética modernista, os versos do período mostram a influência de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Murilo Mendes (1901-1975) na orientação para o exterior e na vontade de recuperar o cotidiano impessoal da cidade. Entre 1943 e 1945, o poeta realiza uma série de viagens: a Nova York, onde frequenta cursos de cinema e pintura no MoMA, a Roma, Paris, Lisboa, Bolívia e Peru. Em 1956, publica Poesias, que recua para um lirismo mais convencional, com elementos como “[...] florescer de tarde/ De amor, no cais!”.
Em seguida, com Compêndio para Uso dos Pássaros (1961), Barros atinge o que os especialistas consideram a consolidação de seu estilo. Neste livro, escrito após se estabelecer novamente no estado natal, no Pantanal mato-grossense, faz da infância fonte de imagens ou personagens e ponto de vista buscado pelos poemas e matriz da linguagem poética. “Penso que só com a desarrumação sintática se consegue atingir o criançamento do idioma”, resumiria em entrevista, aludindo à liberdade com que manipula a língua, de modo avesso à lógica: “O menino caiu dentro do rio, tibum,/ ficou todo molhado de peixe”; “Meu bolso teve um sol com passarinhos”.
O experimentalismo se torna mais intenso no título seguinte, Gramática Expositiva do Chão (1969), que diversifica os recursos empregados. Há uso intenso de enumerações, trânsito entre os registros narrativo e descritivo, criação de poemas como notas de rodapé e diálogos entre o poeta e seres animizados. Nessa obra, como sugere o título, existe a busca por elementos rasteiros, triviais, elevados à condição de poesia pelo artista, que, identificado como “desherói”, “recolhe [...] seus companheiros pobres do chão”.
Esse mesmo interesse pelas “coisas inúteis” origina a composição que dá título ao livro seguinte, Matéria de Poesia (1970), espécie de arte poética: “Todas as coisas cujos valores podem ser/ disputados no cuspe à distância/ servem para poesia”, afirma a primeira estrofe, equiparando a poesia a um jogo simples, praticado por meninos na rua. Essa visão adquire valor social quando, algumas estrofes adiante, o poeta afirma sua postura de resistência diante da realidade: “Tudo aquilo que a nossa/ civilização rejeita, pisa e mija em cima/ serve para poesia”.
O modo característico como manipula a linguagem encontra seu ponto culminante em Arranjos para Assobio (1982), de composições metapoéticas. Além de seguir definindo o valor da poesia por sua inutilidade (“A poesia é antes de tudo um inutensílio”) e sua relação com o mais baixo (“Aceita-se entulho para o poema”), o livro trabalha a gramática, a semântica e o léxico com liberdade.
Novas palavras se formam (“manhã-passarinho”), palavras eruditas e baixas convivem no mesmo verso (“A imarcescível puta preta”), verbos são tomados como substantivos e substantivos como verbos (“Dentre grades se alga, ele!”), substantivos abstratos se tornam concretos (“pulou o silêncio”). Procedimentos que se multiplicam, fazendo com que elementos de naturezas diversas se comuniquem de forma inesperada.
O Livro de Pré-coisas (1985), traz poemas em prosa que retomam o Pantanal como lugar de origem do poeta e símbolo de uma comunhão entre homem e natureza que se deseja reconstituir. Junto com O Guardador de Águas (1989), a crítica reconhece em ambos um processo de amadurecimento. Consolidados, temas e procedimentos continuam sendo trabalhados em títulos como
O Livro das Ignorãças (1993) e Livro sobre Nada (1996) – que fortalecem seu reconhecimento junto ao público – e Exercícios de Ser Criança (1999), sua estreia na literatura infantil.
Com uma produção que soma mais de vinte títulos, traduzidos para diversos idiomas, como espanhol, francês e alemão, Manoel de Barros se consolida como o poeta das insignificâncias, conquistando interessados na maneira como seus versos promovem o reencantamento do mundo.
Reprodução fotográfica Marcelo Buainain
Museu Vale (Vila Velha, ES)
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
Fundação José Sarney (São Luís, MA)
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