Leci Brandão
Texto
Leci Brandão da Silva (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1944). Cantora, compositora e percussionista. Nascida no bairro carioca de Madureira e criada em Vila Isabel, tem suas primeiras influências musicais ao escutar sambas e choros no rádio. Autodidata, na juventude aprende a tocar instrumentos de ritmo, como pandeiro e surdo. Aos 21 anos, compõe a primeira canção, “Tema do Amor de Você”. Em 1968, vence o programa A Grande Chance, de Flávio Cavalcanti (1923-1986), cantando “Favela em Três Tempos”, “Minha Mensagem” e “Fim de Carnaval”. No começo da década de 1970, forma-se em direito na Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro.
Em 1972, torna-se a primeira mulher a integrar a ala de compositores da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. No ano seguinte, apresenta “Quero Sim”, parceria com Darcy da Mangueira (1932-2008), no Encontro Nacional de Compositores de Samba. Em 1973, chega à final do festival Abertura, da Rede Globo, com “Antes que Eu Volte a Ser Nada”, canção composta pela artista e que dá nome ao primeiro LP. Em 1976, assina contrato com a gravadora Philips e lança Questão de Gosto, com nove sambas de sua autoria e “Mulatinho”, de Martinho da Vila (1938). Em 1977, lança Coisas do Meu Pessoal, cuja música “Ombro Amigo” é incluída na trilha sonora da novela Espelho Mágico da Rede Globo. Em 1978, grava Metades, com composições suas, de Ivan Lins (1945) e de Sandra de Sá (1955), e conta com participações dos músicos Paulo Moura (1933-2010) e Antonio Adolfo (1947).
Em 1980, lança o último álbum pela Philips: Essa Tal Criatura, cuja música homônima é finalista do Festival MPB 80 da Rede Globo. Leci fica cinco anos sem gravar discos e retoma sua carreira pela gravadora Copacabana, em 1985, com Leci Brandão, um dos álbuns de maior sucesso da carreira. No repertório, diversas músicas tornam-se hits nas rádios, como “Zé do Caroço”, “Isso É Fundo de Quintal”, “Papai Vadiou” e “Deixa, Deixa”. Dois anos depois, lança Dignidade, com destaque para as canções “Só Quero te Namorar” e “Me Perdoa Poeta”. Nos anos seguintes, mantém a aceitação popular com os álbuns Um Beijo no Seu Coração (1988) e As Coisas que Mamãe Me Ensinou (1989). De 1986 a 1994, atua como comentarista dos desfiles das escolas de samba nas transmissões da Rede Globo, função que retoma em 2002. Em 1990, conquista o prêmio Sharp pelo álbum Cidadã Brasileira – Leci Brandão da Silva. Nos anos 2000, lança cinco discos, além do DVD Canções Afirmativas, em 2007. Em 2011, a gravadora EMI lança a coletânea O Canto Livre de Leci Brandão.
Atua na política e integra o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Muda-se para São Paulo e, em 2010, filia-se ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pelo qual é eleita deputada estadual. A política permeia sua obra, como mostra em “Ponto de Cultura”, canção registrada em Cidadã da Diversidade - Ao Vivo (2013).
Análise
Leci Brandão aparece na cena artística nos anos 1970 e chama a atenção por ser uma das primeiras mulheres compositoras de samba no país1. A cantora é revelada pelo jornalista Sérgio Cabral (1937), ao comentar o LP Antes Que Eu Volte a Ser Nada. Em 1980, Beth Carvalho (1946-2019), uma das vozes femininas do samba com projeção nacional, grava “Canção de Esperar Neném”, parceria de Leci com Paulinho Tapajós (1945-2013).
Mais do que ser uma das primeiras intérpretes femininas a compor samba, gênero musical dominado por homens na época, Leci é uma das primeiras compositoras feministas, defendendo uma posição menos submissa para a mulher. O posicionamento da sambista evidencia-se na faixa de abertura do LP Questão de Gosto, o partido-alto “Ser Mulher”, com versos como “Ser mulher é muito mais que batom ou bom perfume”. Com o álbum, é vista como uma das primeiras compositoras a defender em suas letras a diversidade política, racial e sexual. Exemplos dessas canções de protesto são o samba-jazz “Questão de Gosto”, o samba “Mãos Libertas” e o bolero “As Pessoas e Eles”. Além dessas músicas, Leci regrava o samba-enredo “Casa Grande e Senzala”, defendido pela Estação Primeira Mangueira no Carnaval de 1962. A letra, que faz críticas ao regime escravocrata brasileiro, sustentado até 1888, é inspirada na obra do antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), publicada na década de 1930.
A compositora mantém a contestação de valores e costumes no álbum Coisas do Meu Pessoal. Na música “Marias”, questiona o papel social da mulher. Em “Ombro Amigo”, prega a liberdade de expressão sexual nos versos:
Você vive se escondendo
Sempre respondendo com certo temor
Eu sei que as pessoas lhe agridem
E até mesmo proíbem sua forma de amor.
Na canção “Não Cala o Cantor”, a sambista discute o regime militar vigente no país desde 1964 e critica a exclusão social dos analfabetos:
Encaminhe quem não sabe ler
A conhecer primeiramente a palavra amor
E conduza quem sabe escrever
A estudar muito mais, sempre, até ser doutor
Mas a ponte pra quem sabe tudo
Que a força da dureza não cala o cantor.
Pela postura contestatória, depois de cinco discos lançados pela Philips, Leci rescinde o contrato com a gravadora por questões ideológicas e passa cinco anos sem lançar um álbum. Nesse período, a artista prossegue a carreira apenas em shows pelo Brasil e no exterior. Retoma os lançamentos fonográficos em 1985, quando assina com a Copacabana Discos. Por esse selo, no mesmo ano, lança o álbum de maior sucesso da carreira, Leci Brandão. O LP tem grande repercussão no país, sobretudo pelo sucesso do samba “Zé do Caroço”, baseado na história verídica de um personagem do morro. Além dessa música, o disco traz composições autorais que se tornam conhecidas nacionalmente, como “Isso É Fundo de Quintal” (homenagem ao grupo formado no Cacique de Ramos, no Rio de Janeiro), “Deixa, Deixa” e o partido-alto “Papai Vadiou”. O álbum não abandona a luta pela diversidade sexual, como no samba dolente “Assumindo”:
Vocês estão incomodando uma meia dúzia
Vocês estão atrapalhando esse meio-campo
Somente porque vocês não são desse meio-termo
E eles estão pretendendo dar a meia trava
Mas no meio-dia do sol ou sob a meia-lua
Vocês já andam de mãos dadas no meio da rua.
A artista mantém o trabalho crítico ao longo de toda a carreira. Em termos estilísticos, sua obra não apresenta muitas alterações. No início da trajetória, Leci mescla no repertório diferentes gêneros: além do samba tradicional, grava canções com levadas de jazz, boleros e músicas românticas. A partir dos anos 1980, prioriza sambas de andamento acelerado e partidos-altos, estilos consagrado por nomes como Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho (1959), Almir Guineto (1946), Beth Carvalho e Jovelina Pérola Negra (1944-1998). Exemplo disso é a faixa “Eu Só Quero Te Namorar”, sucesso do segundo disco, Dignidade (1987), lançado pela Copacabana. Para enfatizar as raízes brasileiras, na década de 1980, Leci abre o repertório para a música afro-baiana: grava o samba-reggae “Maravilha Araketu, Semente da Memória”, de Tonho Matéria (1964), e registra temas folclóricos no encerramento de seus LPs, como “Saudação ao Rei das Ervas”, “Saudação a Iansã”, “Saudação a Ogun”, “Saudação a Oxum”.
Em 2005, com gravações bem-recebidas por público e crítica, a sambista comemora 25 anos de carreira e grava seu primeiro disco ao vivo. Em 2007, lança o DVD Canções Afirmativas, com destaque para a interpretação de “Deixa, Deixa”, dividida com o rapper Mano Brown (1970), do Racionais MCs. Nessa canção, reforça sua postura crítica com os versos:
Deixa ele escrever
Deixa discursar
Deixa ele votar
É melhor
Do que ele sacar de uma arma
Pra nos matar.
Nota
1. Nos anos 1970, Leci Brandão não é a única compositora de sambas do país. Em 1974, Dona Ivone Lara (1922-2018) lança um compacto com o sucesso “Tiê-Tiê”, parceria com Hélio dos Santos (1903-2007), e “Agradeço a Deus”, composta com Mano Décio (1909-1984).
Fontes de pesquisa 4
- CABRAL, Sérgio. Elizeth Cardoso: uma vida. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, [s.d.].
- FAUSTINO, Oswaldo. Nei Lopes: retratos do Brasil negro. São Paulo: Selo Negro Edições, 2009.
- SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol. 2: 1958-1985). São Paulo: Editora 34, 1998. (Coleção Ouvido Musical).
- VIANA, Luiz Fernando. Zeca Pagodinho: a vida que se deixa levar. Rio de Janeiro: Rio Arte: Relume-Dumará, 2003. (Perfis do Rio).
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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LECI Brandão.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022.
Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa12146/leci-brandao. Acesso em: 20 de maio de 2022.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7