Montagem de impacto do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) em sua fase nacionalista, dirigida por Antunes Filho (1929), com base em intenso trabalho de preparação dos atores, com exercícios específicos e laboratórios que visam a uma recriação naturalista de um ambiente rural tomado pela histeria religiosa.
É a quarta peça de autoria de Jorge Andrade (1922-1984) montada pela companhia e tem como temas o messianismo, a crença e a fé. O seu ponto de partida é um fato real, ocorrido em abril de 1955: a repressão policial e a morte de fanáticos religiosos da comunidade de Catulé, em Minas Gerais. O episódio é dramatizado pelo autor em estilo épico e de fundo trágico.
Os ensaios consomem árduos meses de trabalho de Antunes Filho junto ao elenco. Interessado num novo realismo, num estilo brasileiro de interpretação, o encenador elabora uma série de exercícios calcados sobre Stanislavski, enfatizando as contradições íntimas e as vivências pessoais dos intérpretes. Como ele mesmo explica "pela primeira vez no teatro brasileiro os atores se arrastam no chão. Foi um escândalo isso. Os atores cuspiam, se arrastavam [...]. Eu parti da seguinte proposta: tudo o que é romântico não interessa; vamos fazer a realidade, como se nós estivéssemos vendo alguém trabalhando, fazendo alguma coisa [...]".1
Esse método integra-se à grande pesquisa que o diretor vem empreendendo com os atores (que, nos anos 1990, culminará num sistema inteiramente completo), mas as inovações muitas vezes parecem demasiadas. Diversas reportagens da época falam em "perda da auto-estima" e "condição animal" para descreverem esse processo, que almeja um supernaturalismo, desarmando os intérpretes de qualquer estereótipo expressivo.
Figuram no elenco grandes intérpretes tais como Raul Cortez (1931-2006), Cleyde Yáconis (1923-2013), Aracy Balabanian (1942), Stênio Garcia (1932); Lélia Abramo (1911-2004) e Ruth de Souza (1930).
Antunes Filho considera a encenação um divisor de águas, por propor uma nova linguagem teatral, mas observa que na passagem da sala de ensaios para o palco, a cenografia "doura a pílula" e prejudica o efeito pretendido. O resultado final, divide público e crítica, arrebanhando tanto elogios quanto reparos inflamados. O espetáculo fracassa e fica pouco tempo em cartaz. O crítico Sebastião Milaré (1945-2014), autor do livro Antunes Filho e A Dimensão Utópica, assim equaciona o projeto: "A sondagem temática através de exercícios físicos levava a um tipo de representação completamente novo e, conseqüentemente, a uma nova forma estética. De maneira que Vereda da Salvação levantou-se contra um pano de fundo de um teatro conformado com o Realismo, assumindo ares de 'coisa extravagante'. (...) E no bojo dos significados intrínsecos e extrínsecos da obra, é impossível desconhecer sua vinculação à história do teatro brasileiro pelo lado de uma linha 'maldita', que tímida e valentemente progrediu na contracorrente da nossa tradição dramática".2
O crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000) ressalta, na encenação, suas virtudes e exageros: "A rusticidade, para o encenador atual, parece trazer consigo algumas conotações artísticas quase obrigatórias e a que Antunes Filho não escapou: o monumentalismo e patriarcalismo bíblicos, o aspecto 'pátio de milagres' etc. Ora, esta carga expressionista, que fazia a representação assemelhar-se por momentos a um ballet grotesco, abafa o texto, não o deixando falar por si, dissolvendo as palavras por entre a incessante movimentação cênica. Pior ainda, aumenta a distância já considerável que nos separava das personagens. [...] Somente no segundo ato a peça e a encenação articulam-se com perfeição, aprofundando progressivamente o caminho interior, preparando-se para atacar de frente essas terríveis provas que são as cenas de histeria individual e coletiva. Aí a direção de Antunes Filho afirma-se em grande vigor".3
Notas
1. ANTUNES FILHO. Entrevista. Dionysos, Brasília, n. 25, p. 135-147, set. 1980. Entrevista concedida a Maria Lúcia Pereira no dia 28 de abril de 1979.
2. MILARÉ, Sebastião. Antunes Filho e a dimensão utópica. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 156.
3. PRADO, Décio de Almeida. Vereda da Salvação. In: ______. Teatro em progresso. São Paulo: Martins, 1964. p. 296.