Título da obra: A Marvada Carne [cartaz]


Reprodução fotográfica autoria desconhecida
A Marvada Carne [cartaz]
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ca. 1985
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Fernando Pimenta
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Walter Rogério
Reprodução fotográfica autoria desconhecida
A Marvada Carne (1985) é o primeiro longa de André Klotzel (1959). Produção da Tatu Filmes, que trabalha em sistema de cooperativa, no qual os participantes são acionistas do filme, também teve verba da Embrafilme. É um dos representantes do jovem cinema paulista dos anos 1980, denominado de cinema da vila. Assim como outras realizações de ex-alunos da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) daquele período, a obra une a experimentação, própria de um cinema de autor, e a atenção com o grande público. Para atraí-lo, retoma a comédia rural, baseando-se numa ampla pesquisa dos costumes, da prosa e do imaginário caipiras.
No longa, a vida no campo é difícil e repetitiva. A agricultura é governada pelos tempos da natureza e pelas atividades típicas de uma comunidade rural caipira. Isso inclui a presença do mutirão para a construção de uma casa, a alimentação restrita aos grãos colhidos na terra, as festas comunitárias, bem como o desejo de ir à cidade grande, apresentado como solução para a fome no ambiente rural. O filme segue a trajetória de Quim (Adilson Barros), do campo para a cidade de São Paulo. Trata-se de um ingênuo caipira, cujo sonho é comer carne de boi. Em um dos vilarejos, ele conhece a jovem Carula (Fernanda Torres) que, há tempos, pede um marido a Santo Antônio. Com a ajuda de mandingas e de uma benzedeira, a donzela descobre o ponto fraco do forasteiro. Para conquistá-lo, ela cria um boato de que o pai mataria um boi para comemorar seu casamento. Seduzido pela oferta, Quim submete-se às diversas provações exigidas pelo sogro, descobrindo finalmente que o tal boi era uma quimera. Depois de constituída família, contando com a ajuda da esposa na lavoura, o trabalho continua repetitivo e pouco rentável. Movido pelo desejo de comer carne de boi, o caipira faz negócios com Satanás, conseguindo uma grande soma de dinheiro para ir a São Paulo. A metrópole se apresenta como uma enorme vitrine, composta de açougues e televisores com imagens de bois. Seu dinheiro, porém, é levado por um falso vendedor. O deslocamento do caipira, excluído do mundo urbano, torna-se cada vez mais problemático. O desejo se realiza quando Quim saqueia um supermercado, junto com a população indignada (nessa época, o Brasil passava por umafase de saques e desabastecimento). Enquanto a multidão esbanja-se com os produtos industrializados, ele rouba um pedaço de carne e foge. No final, ela será compartilhada com a família, num churrasco comunitário, aberto aos vizinhos da periferia.
As imagens de A Marvada Carne dialogam com diversas representações do caipira paulista, passando pela pintura de Almeida Jr. (1850-1899) e pelos filmes de Amácio Mazzaropi (1912 – 1981). A descrição da vida caipira, que contrapõe-se ao estereótipo do homem rústico e preguiçoso, inspira-se no conto As Estrambólicas Aventuras do Joaquim Bentinho, de Cornélio Pires (1884-1958). Há uma preocupação quase antropológica em retratar os costumes e a cultura caipiras.Assim, o casamento entre Quim e Carula é precedido por um mutirão, com a apresentação didática da construção de uma casa de pau-a-pique. Na festa, a câmera atém-se aos pés, que marcam o ritmo da dança do fandango. Durante as refeições, são enfatizados os gestos, os utensílios e a organização da comida dentro do prato. As posturas corporais dos personagens em seus afazeres cotidianos buscam reproduzir o gestual caipira. Os diálogos, por sua vez, também se fundamentam numa grande pesquisa da sonoridade e cadência das falas. Essa abordagem, que levaria a uma descrição naturalista, é rompida, com muito humor, por sequências fantásticas, em que o imaginário caipira vem à tona. É o caso do encontro entre Quim e o Curupira, que tem os pés invertidos e ameaça comer-lhe o coração caso não tenha fumo para dar. Outra dessas rupturas é o encontro do caipira com Satanás, também na penumbra da noite, numa encruzilhada. Disfarçado no corpo de uma jovem da cidade, a entidade logo revela sua face maléfica, com dentes de vampiro e voz estridente, brigando com Quim pelo preço de uma galinha preta.
Jean-Claude Bernardet, no texto Os Jovens Paulistas, identifica nos filmes realizados por André Klotzel, Aloysio Raulino (1947-2003), Rogério Correa (1954) e Walter Rogério (1946), entre outros diretores paulistas do início dos anos 1980, a coexistência de elementos antagônicos que, em termos narrativos, correspondem a uma tensão entre linearidade e ruptura. De forma contínua e concatenada, A Marvada Carne apresenta a cultura caipira e a busca de Quim pelo seu pedaço de carne. As passagens fantásticas, em que o personagem encontra-se com entidades imaginárias, rompem com a linearidade. Em oposição à descrição naturalista, criam-se situações fantásticas. São histórias caipiras, que acontecem em um mundo mágico.
Tales Ab’Saber, em seu livro A Imagem Fria, coloca o filme de Klotzel ao lado de Noites Paraguayas, de Aloysio Raulino, na tematização da morte inevitável das sociedades tradicionais. Eles discutem o impulso de personagens que abandonam o mundo rural, conhecido, em busca das promessas do mundo moderno. Para Quim, na vida repetitiva e humilde do campo, em que o trabalho rende apenas o sustento, não existe possibilidade de realizar seu desejo de comer carne de boi. O embate entre o rural e o urbano, sintetizado pela fome e pelo trajeto do caipira, torna-se cada vez mais acirrado. A primeira sequência de Quim na capital sintetiza a violência urbana sobre o imaginário rural. Na penumbra da noite, diante de uma vitrine repleta de televisores, o caipira vislumbra seu objeto de desejo. A enorme quantidade de bois, apresentada pelas imagens refletidas pelos vidros, fascinam o personagem. Um vendedor engravatado surge do nada e o ludibria, conseguindo arrancar-lhe todo o dinheiro. Ao contrário de outras situações de perigo, nas quais Quim safa-se diante dos poderes fantásticos da natureza, o contato com o vendedor leva a um desfecho ruim. A ordem da natureza é substituída pelo cinismo e pela desonestidade. De qualquer modo, nas sequências finais, em que o caipira rouba um pedaço de carne e faz um churrasco para os amigos, o desejo é finalmente realizado.
No 13º Festival de Gramado, A Marvada Carne é consagrado com os prêmios de melhor filme, melhor atriz (Fernanda Torres (1996)), melhor roteiro (André Klotzel e C. A. Sofredini(1939-2001)), melhor direção (André Klotzel), melhor fotografia (Pedro Farkas), melhor montagem (Alain Fresnot), melhor cenografia (Adrian Cooper) e melhor música original (Rogério Duprat (1932-2006)), entre outros prêmios especiais. Ao longo de 1985, é convidado para diversos festivais internacionais, incluindo o Festival de Cannes, o Festival Internacional do Novo Cine Latino-Americano de Havana, bem como o Festival Internacional de Moscou. O filme entra em cartaz somente em 1986, no estado de São Paulo e em Brasília.
Entre a crítica cinematográfica, a forma assumida pela cultura caipira é um dos temas mais debatidos. Para José Haroldo Pereira1, a espontaneidade e o bom humor de A Marvada Carne encobrem uma complexa construção formal, inspirada no próprio universo caipira. Entre as regras narrativas, Pereira identifica a sexualidade recatada, a constância do trabalho, a ausência de sentimentalismo, bem como a valorização das lendas orais. Para Ortiz Ramos2, o filme cria um contraponto entre passado e contemporaneidade, que corresponde a um encadeamento de épocas e tendências. Na trilha sonora, a dupla caipira Tonico e Tinoco convive com a voz urbana de Eliete Negreiros. Em termos de estilo, a postura documental abre espaço para momentos de fantasia. A representação do mundo urbano também inclui dualidades. Por um lado, envolve a crítica social, da pobreza e do mundo do consumo; por outro, trata-se de um mergulho no desejo e na conquista da carne almejada.
Notas
1PEREIRA, José Haroldo. Delícias da cozinha caipira. Caderno de crítica, Rio de Janeiro, n. 1, maio 1986, p.3-5.
2RAMOS, José Mário Ortiz. Simpatia do campo, inquietações no asfalto. Folha de S. Paulo. 2 Jun. 1985. P.2-3. Ilustrada.
Reprodução fotográfica autoria desconhecida
A Marvada Carne (1985), André Klotzel
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