
O Sapato do meu Tio

Análise
A combinação entre o teatro sem diálogo verbal e a arte da palhaçaria caracteriza o espetáculo O Sapato do meu Tio, um dos mais importantes do teatro na Bahia nos anos 2000. Protagonizado pelos atores Lúcio Tranchesi e Alexandre Luís Casali, sob direção de João Lima, o trabalho de trajetória longeva mostra as glórias e desventuras do ofício do riso, através da personificação do artista mambembe que leva a vida na estrada em cima de uma velha carroça vestido de palhaço, usando sapatos enormes e a indefectível máscara de nariz vermelho.
O foco central da trama é a relação entre um Tio (Lúcio Tranchesi), palhaço esquecido pelo público, mas orgulhoso de sua arte, e seu Sobrinho (Alexandre Luís Casali), que tenta aprender o ofício. Não é um convívio fácil. O mestre não tem mais plateia nem dinheiro no bolso e carrega nas costas a responsabilidade pelo sustento do jovem companheiro de estrada. O relacionamento se desgasta, mas também reacende em Tio a esperança de ver a sua arte ser perpetuada nas ações do seu discípulo.
Na análise do ator Alexandre Luís Casali, o texto sem palavras de O Sapato do meu Tio pode ser compreendido como um diálogo de corpos, de intenções. O roteiro se inspira em características da peça O Menor quer Ser Tutor (1990), de Peter Handke (1942), dentre as quais o aprofundamento de questões existentes entre o mestre e o aprendiz, o velho e o novo, o ensinar e o aprender.
A direção evita forçar um ritmo mais veloz às ações presentes na peça, valorizando aspectos que dimensionam um tempo mais desacelerado, como a repetição de gestos e a rotina dos personagens. O pesquisador Demian Moreira Reis aponta as três fontes técnicas que sustentam o espetáculo do ponto de vista da atuação: a fonte do ator, das práticas circenses e da arte do palhaço. Segundo ele:
A dramaturgia que se desenrola diante de nossos olhos é toda feita por meio de ações físicas. Não há uma palavra articulada. Apenas sons guturais emitidos pelo Sobrinho quando passeia pelas ruas divulgando o espetáculo do Tio. Essa estratégia irá concentrar o entendimento da peça na dança de ações percebidas pelo espectador. E aqui é apropriado indicar que esse aspecto aproxima a peça à palhaçaria, cuja comicidade depende em maior peso da apresentação de estruturas visuais.1
A cena inicial em que o Sobrinho come várias bananas que estão escondidas em sua roupa enquanto os espectadores vão ocupando os seus lugares na plateia, é um bom exemplo do tom de comicidade da encenação. Predomina um humor inocente que se mistura à condição dramática da vida do Tio e do Sobrinho. Ao ser construído sob a base técnica e dramatúrgica da arte do palhaço, o espetáculo amplia aspectos sociais, políticos e humanos já presentes na figura anárquica deste personagem tão popular.
O figurino tem assinatura de Rino Carvalho e busca a sobriedade e a praticidade de dois personagens itinerantes. Eles vestem roupas que são aproveitadas tanto no cotidiano quanto nas apresentações de seus números circenses, subvertendo o estereótipo do palhaço multicolorido e exagerado. A estética do figurino assimila influências dos filmes de Charles Chaplin (1889-1977) e Federico Fellini (1920-1993).
O cenário de Agamenon de Abreu segue a mesma linha conceitual e cria possibilidades práticas para facilitar o deslocamento do elenco em suas turnês. Um telão iluminado de azul, semicircular, instalado no fundo do palco dá um efeito de profundidade maior aos olhos do público e também um sentido de amplidão, de céu aberto que reforça o imaginário da rua, da estrada. A representação plástica da vida simples dos dois artistas é reforçada ainda na iluminação de Fábio Espírito Santo. A luz comunica a passagem de tempo e transita entre o tênue e a penumbra. O efeito de suas tonalidades resulta numa poética para a encenação e sugere nostalgia e solidão na trajetória dos personagens.
Assinada pelo diretor musical Jarbas Bittencourt, a trilha sonora composta para clarinete, fagote e violão exerce um papel decisivo na criação dos tons e climas das cenas. É composta originalmente para o espetáculo durante os ensaios com a presença dos músicos e dos dois protagonistas nos laboratórios propostos pela direção. Nesta fase preparatória são criadas sequências como a valsa do perna-de-pau, o treinamento do Sobrinho e toda a base musical da encenação inspirada em marchas, valsas e música circense. A trilha é posteriormente gravada no estúdio do TVV, em Salvador.
O espetáculo O Sapato do meu Tio marca um momento importante na carreira do diretor, ator e palhaço João Lima, que a partir desse projeto ganha visibilidade na imprensa baiana. Também celebra a vitoriosa parceria entre Alexandre Luís Casali (um estudioso da arte do palhaço no teatro, no circo e nas ruas) e Lúcio Tranchesi (um dos atores mais importantes da história das artes cênicas na Bahia).
A peça recebe seis indicações ao Prêmio Braskem de Teatro, em Salvador, conquistando os troféus de melhor ator (Lúcio Tranchesi), direção e espetáculo adulto do teatro baiano em 2005. Ao participar do projeto Sesc Palco Giratório, o elenco se apresenta em mais de 70 cidades brasileiras, numa extensa turnê que inclui quase todas as capitais do país. Além do êxito em seu país, a peça representa quatro vezes o Brasil em festivais e eventos internacionais, com passagens por Espanha, Chile, Guiana Francesa e República Dominicana.
Nota
1 REIS, Demian Moreira. A palhaçaria em O sapato do meu tio. Repertório – Revista Acadêmica de Teatro & Dança, n. 15, 2010, p. 165-175.
Ficha Técnica
do evento O Sapato do meu Tio:
- Autoria (Premiação)
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Direção
(Premiação)
- João Lima (Melhor Direção - Prêmio Braskem de Teatro)
- Direção (assistente) (Premiação)
- Cenografia (Premiação)
- Cenografia (assistente) (Premiação)
- Adereço (Premiação)
- Figurino (Premiação)
- Iluminação (Premiação)
- Direção musical (Premiação)
-
Elenco
/ Personagem (Premiação)
- Alexandre Luís Casali / Sobrinho
- Lúcio Tranchesi / Tio (Melhor Ator - Prêmio Braskem de Teatro)
- Direção de produção (Premiação)
- Produção executiva (Premiação)
- Produção (assistente) (Premiação)
Fontes de pesquisa (6) 
- CASALI, Alexandre Luís. Alexandre Luís Casali. Salvador: [s.n.], 2012. Entrevista concedida a Marcos Uzel.
- PROGRAMA do espetáculo O sapato do meu tio, Salvador, Teatro do Goethe-Institut, 21 set. 2005.
- REIS, Demian Moreira. A palhaçaria em O sapato do meu tio. Repertório – Revista Acadêmica de Teatro & Dança, n. 15, 2010, p. 165-175. Disponível em: < http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/5222/3772 >. Acesso em: 26 nov. 2012.
- SANTOS, Selma. Selma Santos. Salvador: [s.n.], 2012. Entrevista concedida a Marcos Uzel.
- UZÊDA, Eduarda. Linguagem gestual. A Tarde, Salvador, 21 set. 2005, p. 2.
- UZEL, Marcos. A noite do teatro baiano. Salvador: P55 Edições, 2010.
Como citar? 
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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O Sapato do meu Tio. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento635862/o-sapato-do-meu-tio>. Acesso em: 09 de Dez. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7