Título da obra: O Rei da Vela


Registro fotográfico Fredi Kleemann
Dina Sfat - O Rei da Vela
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1967
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Fredi Kleemann
Registro fotográfico Fredi Kleemann
O Rei da Vela (1967) é a primeira montagem da peça de Oswald de Andrade (1890-1954), realizada pelo Teatro Oficina de São Paulo, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa (1937). Estreia em 29 de setembro de 1967 como manifesto satírico e insurgente contra as relações de poder no capitalismo e a posição de subserviência do Brasil na geopolítica internacional. Por sua radicalidade estética e política, é considerada marco do modernismo e do tropicalismo.
Publicado em 1937, O Rei da Vela rompe paradigmas da estética burguesa em um período de convulsão social – à iminência do Estado Novo (1937-1943), que instituiria vedações às liberdades individuais. A peça reflete a investigação formal iniciada por Oswald de Andrade com a Semana de Arte Moderna (1922) e com o movimento antropofágico. É um caso particular de texto teatral que permanece inédito por três décadas, explicitando a distância entre os palcos brasileiros e as propostas modernistas.
Na peça, o agiota Abelardo I é um novo rico interessado na ascensão social pelo casamento com a aristocrata Heloísa, que deseja reverter sua decadência econômica. A transação matrimonial acontece sob interferência de um representante do capital estrangeiro. A crítica às relações de poder perfaz um enredo que vincula operações de crédito pessoal às transações entre nações imperialistas e colonizadas, ao mesmo tempo em que a sexualidade despudorada fere a moral de uma burguesa conservadora e reacionária.
Nos anos 1960, em plena Ditadura Militar e às vésperas do AI-5, o Teatro Oficina compartilha com outros artistas de estéticas distintas, como o Teatro de Arena, a preocupação de não alienar o palco do contexto histórico e social do país. Para responder ao complexo momento econômico, cultural e político, José Celso Martinez Corrêa recorre às insubordinações formais e conceituais de O Rei da Vela.
O texto que anos antes parecera “mudo”, “modernoso e futuristoide”1 ao diretor é resgatado por seu caráter de obra aberta, avessa ao racionalismo e às convenções teatrais. O Teatro Oficina multiplica as citações e acirra os tons grotesco, obsceno, violento e irreverente da obra original, criando um universo cênico com vida própria. O espírito paródico e anárquico, que ataca o público presente, institui um “teatro da agressão”, conforme nomeia o crítico Anatol Rosenfeld (1912-1973).
Formas artísticas eruditas e populares contrastam com uma profusão de referências de outras artes, tempos e geografias. O primeiro ato, dedicado às operações de agiotagem de Abelardo I, é montado em linguagem circense. O segundo, às voltas com transações sexuais em uma ilha tropical na baía de Guanabara, evoca o teatro de revista. E o terceiro, retornando ao cenário inicial para substituição do protagonista por seu sócio e homônimo, recebe tratamento operístico.
O ator Renato Borghi (1937) confere caráter debochado a Abelardo I, conciliando referências europeias à memória de atores cômicos populares como Oscarito (1906-1970) e Grande Otelo (1915-1993), em atuação que lhe rende os prêmios Molière e Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT). Ítala Nandi (1942), no papel de Heloísa de Lesbos, Dina Sfat (1938-1989), Dirce Migliaccio (1933-2009), Otávio Augusto (1945) e Othon Bastos (1933) também integram o elenco.
No palco giratório, um boneco fálico de grandes dimensões metralha as vítimas de Abelardo I. O cenário expressionista, criado por Hélio Eichbauer (1941-2018), também figurinista, acopla signos da antropofagia modernista em versão kitsch. Personagens ostentam maquiagens excessivas e saqueiras, que aludem ao recalque das pulsões sexuais.
Nas primeiras apresentações, alguns espectadores criticam o mau gosto e a virulência, outros apelam à censura da Divisão de Diversões Pública, e há os que apenas saem sem aplaudir, conforme solicita o texto. Após uma reação inicial de incompreensão da ruptura estética empreendida, a crítica teatral passa a reconhecer as qualidades de uma obra que apresenta um país contraditório e que desfaz o mito do brasileiro cordial.
Em passagem de O Rei da Vela por Paris em maio de 1968, o teórico francês Bernard Dort (1929-1994) observa que o cruzamento paródico de gêneros operários e burgueses, a escalada do deboche e o espelhamento (deformador) do contexto social brasileiro elevam à última potência o jogo teatral de “massacre”, encenado pelo Oficina como um apelo por um “teatro de insurreição”.2
A montagem coincide com os movimentos de contracultura que eclodem no Maio de 1968, na França, e geram novas formas na música, no cinema e nas artes plásticas brasileiras, como o Cinema Marginal. Nesse contexto, une-se a outras obras icônicas que revisam a experiência de país, como o filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha (1939-1981) – cujas imagens inspiram José Celso.
De acordo com o crítico Décio de Almeida Prado, a subversão do ufanismo praticada em favor de uma celebração selvagem do “subdesenvolvimento material, mental e artístico”[3] do país, faz com que O Rei da Vela inaugure o tropicalismo no teatro. No cinquentenário do espetáculo, em 2017, José Celso e Renato Borghi estreiam no Teatro Oficina uma remontagem de O Rei da Vela, reafirmando a atualidade da obra para além do seu tempo.
O Rei da Vela é um retrato das relações político-sociais baseadas nos interesses financeiros e de concentração de poder. Por um lado, é um exercício de encenação de diferentes gêneros teatrais; por outro, um exercício político de resistência e contracultura diante de um sistema de censura e autoritarismo.
1 FOLHA de São Paulo. Noite do “Rei da vela” foi sucesso no Oficina. 30 set. 1967. Disponível em: Acesso em 13 mai. 2019.
2 DORT, Bernard. Uma comédia em transe. Le Monde, Paris, abr. 1968, traduzida e republicada no segundo programa de O Rei da Vela, cit.
3 PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 113.
Registro fotográfico Fredi Kleemann
Registro fotográfico Fredi Kleemann
Reprodução fotográfica Derly Marques
Registro fotográfico Fredi Kleemann
Registro fotográfico Fredi Kleemann
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